quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013

Dilemas e conflitos éticos na doação de órgãos


Famílias têm de lidar com uma série de dúvidas na hora de decidir se doam ou não os órgãos de um parente recém-perdido
Saúde
Os hospitais e instituições que mais contribuíram, durante este ano, para o incentivo da doação de órgãos e tecidos no Estado de São Paulo, foram homenageados pela Secretaria Estadual da Saúde no final de setembro com o Prêmio Destaque em Transplantes, distribuído em celebração ao Dia Nacional da Doação de Órgãos e Tecidos (27/9).
O Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina (HC-FMUSP) foi um dos maiores vencedores. Além de ter liderado o número de transplantes de coração e pulmão na capital, seu Serviço de Procura de Órgãos e Tecidos (Spot-HC) notificou o maior número de potenciais doadores na cidade. Foram 60 candidatos encontrados entre janeiro e agosto. A área de atuação do órgão abrange toda a zona oeste de São Paulo.
A questão é: quantos desses se tornaram doadores efetivos e tiveram, de fato, seus órgãos disponibilizados para transplante? Todo paciente com morte encefálica – lesão irrecuperável do encéfalo que causa interrupção definitiva de todas as atividades cerebrais – é um potencial doador. “A decisão final sobre o destino dos órgãos da pessoa, no entanto, cabe à família”, explica Edvaldo Leal, enfermeiro e vice-coordenador do Spot-HC. A lei, até 1997, presumia que todos os brasileiros eram doadores, mas uma reformulação em 2001 transferiu para os familiares do paciente morto a responsabilidade sobre seus órgãos.
Equipe do Spot-HC notificou 38% dos potenciais doadores em sua região de abrangência neste ano
E nem sempre a decisão deles é doar. Na verdade, na maioria das vezes, se negam. Dados divulgados pela Associação Brasileira de Transplantes de Órgãos (ABTO) mostram que, entre janeiro e setembro de 2012, cerca de 6 mil pacientes foram diagnosticados com morte cerebral no País. Seus órgãos poderiam salvar a vida de quase 22 mil pessoas que aguardavam na fila de espera. Mas somente pouco mais de 1.800 deles se tornaram doadores. No Estado de São Paulo, no mesmo período, foram registrados quase 2 mil candidatos, com apenas 590 tendo seus órgãos retirados para transplante.
Os motivos para isso são vários. As famílias enfrentam uma série de dilemas éticos na hora de decidir o que fazer com o ente querido recém-perdido. “É uma questão que gera conflitos dentro do seio familiar”, comenta Leal. A própria dificuldade em compreender o conceito da morte encefálica contribui para a negação. É algo que ainda não está sedimentado para a maior parte da população. “A pessoa está na UTI (Unidade de Terapia Intensiva), com o cérebro morto, mas o coração batendo e os outros órgãos funcionando. Para alguns, é difícil aceitar que ela morreu. Parece que há sempre uma luz no fim do túnel.”
Segundo o enfermeiro, a religião costuma, dentro desse sentido, ser usada como razão para não doar, mesmo que a maioria das doutrinas não se posicione contra tal prática. Muitas, pelo contrário, incentivam-na, tratando-a como uma demonstração de amor e respeito ao próximo. A crença em Deus, porém, alimenta a esperança da família de que um milagre possa acontecer para que o quadro de saúde do ente querido se reverta. Algo cientificamente impossível em se tratando de morte encefálica.
3. “Divergências entre os familiares da pessoa falecida, com posicionamentos favoráveis e contrários à doação dos órgãos, gera dificuldade consenso para a tomada da decisão” – Maria Cristina Massarolo
E os motivos para a negação vão muito além: medo da reação e de conflitos com o resto da família, suspeitas de corrupção e do comércio ilegal de órgãos, desconfiança quanto às informações passadas pelos médicos, e muito mais. “O que eu percebo é que toda vez que existe um bom relacionamento entre a equipe médica e a família, fica mais fácil para que a doação seja efetivada”, declara Leal. “É importante que os familiares do paciente estejam inseridos em todo o processo de acompanhamento médico, de modo que, no caso de óbito, tenham tempo para compreender e lidar com a situação.”
Para Maria Cristina Massarolo, professora do Departamento de Orientação Profissional da Escola de Enfermagem, a recusa em doar decorre de uma falta de esclarecimento sobre o assunto para a população. As campanhas de incentivo à doação não são o bastante. “As pessoas precisam de mais do que motivação para isso. É necessária toda uma educação relativa à doação de órgãos”, comenta.
A professora explica que, partindo-se do pressuposto de que a educação sobre o assunto é deficiente, a mudança na lei em 2001 e a consequente transferência da responsabilidade sobre os órgãos do morto para a família acaba sendo justificável. No entanto, ela destaca: “As pessoas deveriam ter o esclarecimento necessário para poder manifestar em vida o desejo de doar ou não seus órgãos após a morte”. Segundo ela, quanto melhor for a educação sobre o tema, mais argumentos se terá para assumir que a decisão cabe ao indivíduo, não à sua família.
Nos países com os melhores serviços de captação de órgãos do mundo, como Espanha e Estados Unidos, por exemplo, a temática da doação está inserida no cotidiano desde muito cedo. “É algo que falta por aqui”, acredita Edvaldo Leal. “Nesse países, o assunto é introduzido para as crianças ainda nas escolas. Isso é muito importante”.
Infraestrutura hospitalar
“As filas de espera para transplante sempre serão maiores do que a oferta de órgãos, independentemente de quão bom seja o Serviço de Procura de Órgãos de determinada instituição. É assim em qualquer país do mundo.”
Quem declara isso é Leonardo Borges, coordenador médico do Spot-HC. Os motivos, ele aponta, giram em torno da própria evolução da medicina. O envelhecimento da população, aliado ao aumento da incidência de certas doenças como obesidade, hipertensão e diabetes – que ao evoluir tornam necessário o recebimento de um novo órgão –, cria um aumento da demanda. “Você consegue manter um sistema estável de captação, mas a fila não vai diminuir”, reforça.
Leonardo Borges, à esquerda, e Edvaldo Leal, à direita
Ao longo dos últimos anos, os números têm melhorado no Brasil. O Sistema Único de Saúde (SUS) financia mais de 90% dos transplantes aqui realizados. Se em 2001 foram aproximadamente 10.500 operações de sucesso no País, em 2011 chegou-se à casa dos 23 mil, segundo dados divulgados no começo do ano pelo Ministério da Saúde. Um aumento superior a 100%. Do ano passado para cá, o crescimento foi de 12,7%.
Mesmo assim, ainda há o que melhorar. Principalmente no que diz respeito à infraestrutura hospitalar. “Eu não sei se o País está preparado, hoje, para viabilizar um sistema de transplante maior do que o atual”, diz o vice-coordenador Leal. Para ele, existe uma escassez de profissionais nas UTIs: faltam enfermeiros de terapia intensiva, fisioterapeutas, psicólogos para dar apoio às famílias, entre outras funções.
O enfermeiro completa o raciocínio: “Não adianta querer transformar o povo em uma população doadora se você não tem estrutura hospitalar para acompanhar a oferta de órgãos. Se as pessoas doarem mais e não tivermos a organização necessária para aproveitar essa oferta, haverá um descrédito enorme das instituições médicas responsáveis”.
Matéria de João Vitor Oliveira, na edição 146 da revista Espaço Aberto / USP, publicada peloEcoDebate, 07/02/2013

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